quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Arquivologia / História

OS PROJETOS DE MODERNIZAÇÃO DO BRASIL (1870-1930): O pensamento geográfico na obra Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto

Artur Monteiro Leitão Júnior

Instituto de Geografia – Universidade Federal de Uberlândia

artur_ml_junior@yahoo.com.br

Rita de Cássia Martins de Souza Anselmo

Instituto de Geografia – Universidade Federal de Uberlândia

ritacmsou@ufu.br

Introdução

O período entre o final do século XIX e o início do século XX, em consonância com os debates filosófico-científicos à época, é marcado profundamente pela necessidade de o Brasil ser reconhecido internacionalmente como uma grande nação, desvinculando-o dos estigmas de atraso, indolência e ociosidade de seus habitantes. Para tanto, instaurou-se, enquanto palavra de ordem dos discursos, o imperativo da modernidade, fundamentada em aspectos materiais – a partir de uma remodelação da estrutura e organização social e de um desenvolvimento técnico – e ideais – calcados nos princípios civilizatórios, referenciados na Europa Ocidental.

Sob o signo da modernização, os literatos – enquanto uma parcela significativa da elite intelectual brasileira, ínfima diante da grande massa de analfabetos e iletrados – versavam acerca de como entendiam as condições políticas, culturais, sociais, econômicas e espaciais do Brasil daquele momento histórico. Isso representa, para a literatura do final do século XIX e início do século XX, uma fonte rica de análise para a identificação das visões de mundo expressas pelos escritores, o que por extensão, significa a expressão das ideologias científicas e geográficas dos grupos de intelectuais que cada um dos literatos buscava “dar voz” a partir de seus textos e discursos artísticos.

Assim, este artigo se fundamenta metodologicamente sob essa perspectiva de resgate dos discursos e das visões de mundo a partir da Literatura, buscando interpretar nos escritos do autor carioca Afonso Henriques de Lima Barreto, mais especificamente na obra Triste Fim de Policarpo Quaresma, quais as interpretações que esse escritor desenvolve acerca do espaço urbano do Rio de Janeiro e da sociedade fluminense, submetidos a intensos processos de transformação a partir das mudanças políticas, econômicas, culturais e políticas no Brasil neste momento de modernização nacional (1870-1930).

Para além das contribuições estilísticas importantes para a literatura nacional brasileira do período, o enredo favorece o desenvolvimento de concepções ideológicas de Lima Barreto/Policarpo Quaresma acerca da modernização nacional. O protagonista vive três estágios diferentes na obra – um modesto funcionário público, um proprietário rural e um soldado governista voluntário contra a Revolta da Armada, de 1893 – correspondentes a três níveis diferentes e complementares do universo fluminense, encarados aqui como metonímia da sociedade brasileira como um todo: a vida simples do subúrbio do Rio de Janeiro; o cotidiano familiar e político do interior (zona rural); e a atmosfera política da Primeira República. Utilizando-se do quixotesco Quaresma, Lima Barreto– um dos mais veementes críticos da sociedade à sua época – traça um perfil da sociedade e da organização espacial, política e cultural do Brasil no final do século XIX, expondo instâncias das reformas modernizadoras pensadas pelos intelectuais da época: a reforma pela cultura, a reforma pela agricultura e a reforma pela força militar. Para cada uma dessas reformas, Policarpo Quaresma encontra empecilhos que transformam o otimismo inicial a respeito da grandiosidade da pátria em um pessimismo devastador, cético quanto à viabilidade da efetivação do sonhado progresso pensado para o Brasil.

É importante ressaltar que o presente artigo constitui-se em um trabalho preliminar no intento de identificar o discurso geográfico e social do escritor Lima Barreto expresso em seus textos literários, sobretudo em Triste Fim de Policarpo Quaresma. Como modelo para identificar parte do pensamento intelectual brasileiro no final do século XIX e início do século XX, ante os anseios de modernização nacional, este artigo faz parte de um projeto maior, no qual se pretende um estudo pormenorizado da vida e obra de Lima Barreto, identificando-o ou afastando-o dos preceitos filosófico-científicos que penetraram a atmosfera intelectual brasileira no período, contribuindo para as suas visões de mundo e seus discursos geográficos acerca da realidade carioca e, por extensão, da realidade brasileira neste momento histórico.

Assim sendo, este artigo faz uma pequena discussão acerca da Literatura como modelo de compreensão da realidade, constituindo-se em uma rica fonte para a apreensão do pensamento dos intelectuais, notadamente os literatos, por meio dos seus discursos nos textos literários. Em seguida, parte-se para a discussão do Pré-Modernismo brasileiro, destacando-se as suas características e contradições; é neste momento literário que Lima Barreto se insere, permitindo a análise das características de sua obra, dentre as quais se destaca o romance Triste Fim de Policarpo Quaresma: pautado no exame do pensamento barretiano e nos discursos geográficos e sociais expressos na referida obra são trabalhados os dois últimos tópicos deste artigo.

A Literatura como modelo de compreensão da realidade

O século XIX foi amplamente marcado por uma “invenção” histórica do Estado-nação, em nível mundial, pautado na independência ou na soberania política, na unidade territorial ou legal e na construção de uma idéia de identidade nacional, não raro, ideologicamente operada por mitos de origem que promovessem a unificação de sociedades bastante fragmentadas social, política, cultural e economicamente. Nesse contexto, as ciências ganharam um novo estatuto, sendo usadas como conhecimentos ativos em prol dessa nova causa em questão: a fundação das identidades nacionais.

Assim, a construção política e geográfica dos Estados-nação articulou-se também à necessidade de incorporação das manifestações culturais, ensejando narrativas míticas que se configurassem como soluções para contradições e conflitos próprios à heterogeneidade social, de modo que esses mitos pudessem fundar uma concepção universalista, indivisível e inquestionável do conteúdo de uma nação, revestida de heróis e contos lendários. Essas distinções nacionais, aliadas aos projetos amplos de formações territoriais, definiram, em grande medida, os rumos da história do período para Estados Nacionais em construção, como o Brasil.

No caso brasileiro, a redefinição da identidade nacional ocorreu entre as últimas décadas do século XIX e as três primeiras décadas do século XX: os sessenta anos entre a promulgação da “Lei do Ventre Livre” (1871) e a dita Revolução de 1930 marcam, segundo a tradição dos historiadores, a ascensão do “projeto de modernização” do Brasil, caracterizado pela transição do trabalho escravo para o trabalho livre, a acentuação das diferenças sociais e econômicas entre as regiões brasileiras, a sucessão da monarquia pela república e o deslocamento do eixo principal do comércio brasileiro da Europa para os Estados Unidos (MACHADO, 2006).

Ainda segundo Machado (2006), essa redefinição foi pautada em um grupo ínfimo da população, o qual desenvolveu duas dimensões: um “olhar para dentro”, criticando a sociedade estruturada em relações sociais escravocratas, o que desafiava a fundação de uma racionalidade que fundamentasse a valorização do nacional, e um “olhar para fora”, implicando na adoção de uma “razão classificatória” que estabelecesse a posição do Brasil ante as nações “progressistas”. Foram essas dimensões que permitiram a incorporação de ideologias científicas – tais como o darwinismo social, o positivismo e o neolamarckismo – ao cenário intelectual brasileiro da época, estabelecendo o divisor de águas entre o Brasil colonial e o Brasil “moderno”. Ao pensamento geográfico coube, grosso modo, “o estabelecimento do potencial e dos limites da natureza física, social e política do país diante das idéias programáticas do ‘progresso’” (MACHADO, 2006, p.310).

Segundo Melo (2003), a segunda metade do século XIX foi marcada por grandes e profundas mudanças: em termos econômicos, observou-se a definitiva ascensão do café, a criação das instituições financeiras e as primeiras tentativas industriais. No plano social, destacam-se os conflitos em torno da extinção do tráfico negreiro, a abolição da escravatura e a chegada dos imigrantes europeus, com suas respectivas culturas, de certo modo mais familiarizadas ao emprego livre nos campos e nas cidades. Foi também o tempo em que os caminhos pisados pelos burros de carga foram sendo substituídos pelas estradas de ferro, instaurando uma aura de progresso e modernidade, intensificada pelo início de uma urbanização galopante em detrimento do abandono dos campos (MELO, 2003).

O final do século XIX e o início do século XX, então, denotaram um forte turbilhão de mudanças, infestando a atmosfera intelectual e artística brasileira. Nos dizeres de Antônio Cândido (1987), a literatura, num país de analfabetos como era o caso do Brasil, exerceu uma função devoradora, atuando como instrumento de imposição cultural e meio de integração das manifestações artísticas locais às tradições ocidentais. Nesse contexto, os discursos veiculados pelos textos literários assumiram posições ideológicas, em termos científicos e geográficos, acerca do modo de condução da formação territorial e da construção da identidade nacional brasileiras.

Assim sendo, os textos literários, de maneira geral, não se mantêm neutros ao momento político, uma vez que expressam, implícita ou explicitamente, determinadas orientações sociais, políticas, culturais, econômicas e espaciais que buscam legitimidade e materialização no Real. Isso porque o próprio autor ocupa uma determinada posição no contexto literário à sua época, bem como uma determinada posição social:

[...] o escritor, numa determinada sociedade, é não apenas o indivíduo capaz de exprimir a sua originalidade, (que o delimita e especifica entre todos), mas alguém desempenhando um papel social, ocupando uma posição relativa ao seu grupo profissional e correspondendo a certas expectativas dos leitores ou auditores (CANDIDO, 1976, p.74).

Neste artigo, interessa-nos, além do contexto literário e do grupo de profissionais a que se liga o escritor Afonso Henriques de Lima Barreto, a posição social ocupada por este escritor, permitindo um maior entendimento da profundidade e da eficácia política de sua obra.

O Pré-Modernismo brasileiro

O período de 1900 a 1922 é marcado por uma multiplicidade de manifestações literárias: convivem “desde os poetas parnasianos e simbolistas, que continuavam a produzir, até os escritores que começavam a desenvolver um novo regionalismo, além daqueles mais preocupados com uma literatura política e outros, ainda, com propostas realmente inovadoras” (DE NICOLA, 1998, p.248). Assim, o que se convencionou chamar de Pré-Modernismo – nomenclatura estabelecida por Tristão de Atayde – designa os textos literários que não seguiam, em algum ou vários aspectos, as diretrizes estilísticas e temáticas das escolas literárias pretéritas com as quais buscava romper (Romantismo, Parnasianismo, Simbolismo, Naturalismo e Realismo).

O Pré-Modernismo deve ser entendido, conforme Alfredo Bosi (1973), em dois sentidos, até mesmo contrastantes: no primeiro, o prefixo pré assume a postura de uma anterioridade temporal, sustentando os traços conservadores, esteticamente antimodernistas, e mantendo as tendências realistas, naturalistas e parnasianas. No segundo, o prefixo conota uma antecipação temática e formal dos valores renovadores modernistas, adotando posturas mais contundentes e críticas à realidade brasileira. De acordo com Penteado Martha (2000):

[...] graças a essa visão de Alfredo Bosi, é possível estabelecer uma significativa distinção entre os escritores que compõem o campo intelectual do início do século. Mesmo porque seria difícil, senão impossível, abrigar escritores como Amadeu Amaral, Martins Fontes (neoparnasianos) e prosadores acadêmicos como Rui Barbosa e Coelho Neto sob o mesmo manto de produtores como Euclides da Cunha, Monteiro Lobato, Graça Aranha e Lima Barreto, em cuja textura encontramos participação social, ironia e crítica (PENTEADO MARTHA, 2000, p.3).

Antônio Cândido (1976), em linhas gerais, entende o Pré-Modernismo como um período literário de permanência, conservando os padrões estéticos realista-naturalistas, pautados na busca pela perfeição formal. Entretanto, este período literário também reserva exceções significativas, como as obras de escritores como Alphonsus de Guimarães, Augusto dos Anjos e Lima Barreto, delatoras de preocupações políticas e sociais mais profundas.

Conforme Infante (2001), o Pré-Modernismo marcou uma época de um nacionalismo crítico e inovador, de modo que a literatura passou a ser concebida como um instrumento de ação social, permitindo conhecer a realidade e, assim, aumentar nossa capacidade de convivência e organização. Todavia, essa concepção de literatura afastava-se do ideal literário cultivado pelos governantes do país, os quais preferiam um nacionalismo mais ufanista e uma literatura mais bem comportada. A esse respeito, Infante (2001, p.384) comenta:

Uma literatura que preferia tematizar as enormes diferenças sociais do país em vez de louvar o “progresso” nacional era, sem dúvida, um desagradável empecilho à propaganda oficial, que procurava passar a idéia de que a República, recém-consolidada pela chamada “política café-com-leite” (a aliança entre os produtores de café paulistas e os criadores de gado leiteiro de Minas Gerais), era efetivamente um caminho modernizador e democratizante para o país (INFANTE, 2001, p.384).

A descoberta do Brasil “não-oficial” foi, portanto, o grande mérito da prosa pré-modernista, uma vez que permitiu a expressão do nacionalismo crítico e progressista em detrimento do nacionalismo conservador oficial e, por conseqüência, a manifestação dos tipos humanos marginalizados. Ademais, o Pré-Modernismo também introduziu uma renovação da linguagem literária: ao lado da poetização da linguagem científica, incorporou-se o uso de regionalismos, de formas da linguagem popular ou de um estilo mais simples e despojado, próximo à linguagem jornalística (INFANTE, 2001).

É no interior dessa acepção do Pré-Modernismo crítico, calcado em um nacionalismo progressista, que encontramos a obra de Lima Barreto.

Lima Barreto: um “estrangeiro” do Rio de Janeiro à sua época

Afonso Henrique de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro, em 1881. Mulato, de origem humilde, ele dedicou sua obra a desmascarar a falsidade dos poderosos. Realizou os seus estudos preparatórios no Colégio Pedro II, ingressando, posteriormente, na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, a qual abandonaria antes da formatura a fim de assegurar o seu próprio sustento a partir do funcionalismo público. Dedicou-se ao jornalismo e à literatura de crítica social, atividades que foram alvos de muitas polêmicas e que lhe renderam inúmeras críticas. Sua vida foi marcada por profundos desenganos e humilhações, em parte causados pela loucura de seu pai – gerando a internação do próprio Lima Barreto em casa de desajustados mentais. A boemia e o alcoolismo, porém, parecem não ter interferido em seu trabalho intelectual, mas o levaram à morte prematura, em 1922, aos 41 anos.

A sua produção literária foi diversificada, incluindo romances, contos, crônicas, sátiras políticas, críticas literárias e um livro de memórias. Entre as suas obras destacam-se: Recordação do Escrivão Isaías Caminha (1909); Triste Fim de Policarpo Quaresma (1915); Numa e Ninfa (1915); Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá (1919); o livro de contos Histórias e Sonhos (1920); a sátira política Os Bruzundangas (1923); Clara dos Anjos (1948); e o romance autobiográfico sobre sua experiência no hospício O Cemitério dos Vivos (1953). Nota-se que parte da sua obra foi publicada após a sua morte, sendo resultado de esforços de compilação dos textos encontrados em jornais e revistas com os quais colaborou.

A obra de Lima Barreto é marcada por um estilo literário em que a paixão se sobrepõe à inteligência e à técnica da perfeição estética. Reconhece-se que desenvolveu uma obsessão pela literatura como forma de extravasar a sua irreprimível necessidade de explorar temas ligados à sua própria vida, abordando, constantemente, temas ligados ao preconceito da sociedade da época contra os mestiços e pobres, apresentando sempre uma indignação contra a insensibilidade dos ricos, a superficialidade dos burocratas, a corrupção dos políticos e a esterilidade dos falsos artistas.

Para Lima Barreto, a literatura possuía um caráter militante, uma “missão social, de contribuir para a felicidade de um povo, de uma nação, da humanidade” (BARRETO, 1907 apud ROSSO, 2006). Rosso (2006)[1] expressa as concepções barretianas sobre a arte literária:

Parece-me que o nosso dever de escritores sinceros e honestos é deixar de lado todas as velhas regras, toda a disciplina exterior dos gêneros, e aproveitar de cada um deles o que puder e provocar, conforme a inspiração própria, para tentar reformar certas usanças, sugerir dúvidas, levantar julgamentos adormecidos, difundir as nossas grandes e altas emoções em face do mundo e do sofrimento dos homens, para soldar, ligar a humanidade em uma maior, em que caibam todas, pela revelação das almas individuais e do que elas têm em comum e dependente entre si. [...] Não desejamos mais uma literatura contemplativa, o que raramente ela foi; não é mais uma literatura plástica que queremos, a encontrar beleza em deuses para sempre mortos, manequins atualmente, pois a alma que os animava já se evolou com a morte dos que os adoravam. Não é isso que os nossos dias pedem; mas uma literatura militante para maior glória da nossa espécie na terra e mesmo no Céu (BARRETO, 1907 apud ROSSO, 2006, p. ).

Esse tom literário militante de Lima Barreto, oposto à escrita floreada e vazia, aristocrática e fútil da maioria dos seus contemporâneos, apresenta um caráter de denúncia, cujas temáticas principais, em essência, referiam-se à discriminação social e racial, ao preconceito de cor, ao vazio moral, intelectual e ético dos políticos, à ganância e ambição, ao arrivismo, ao bovarismo, à miséria e opressão social (ROSSO, 2006). A obra ficcional barretiana apresenta, segundo Rosso (2006), algumas linhas recorrentes: obsessão pela origem, marcas da religiosidade, evocação do mistério e da surpresa, emocionadas descrições dos subúrbios cariocas, as periferias urbanas, as divisões de classes, a exclusão social, os pobres e os enjeitados e os traços da raça. Em todas essas linhas, o escritor apresenta grande perspicácia na descrição e análise da realidade brasileira, gerando um tema nuclear – o poder e seus efeitos discricionários – em torno do qual seus registros apresentam-se emocionados e opinativos, quase sempre sarcásticos, satíricos e irônicos (ROSSO, 2006).

A literatura contemporânea encontrou em Lima Barreto uma contribuição importante: o abandono do modo artificial e erudito de escrever, adotado em ampla medida pelos literatos da época. Ao contrário, o autor buscou aproximar-se da linguagem cotidiana, colaborando para uma descontração e objetividade das frases, o que agradou parte dos escritores modernistas da Semana da Arte Moderna de 1922. A esse respeito, Milliet (1948) escreveu:

Lembro-me da grande admiração que tinha por Lima Barreto o grupo paulista de 22. Alguns entre nós, como Alcântara Machado, andavam obcecados. O que mais nos espantava então era o estilo direto, a precisão descritiva da frase, a atitude antiliterária, a limpeza de sua prosa, objetivos que os modernistas também visavam. Mas admirávamos por outro lado sua irreverência fria, a quase crueldade científica com que analisava uma personagem, a ironia mordaz, a agudeza, que revelava na marcação dos caracteres.

De acordo com Bosi (1992), Lima Barreto deprimia-se com o universo de citação de onde os letrados exibiam a seus pares o domínio sobre o outro, com uma mistura sertanejo-parnasiana de curiosidade, folclorismo e poder cultural. Esse modelo hermético de escrita era derivado de um fetiche com o estrangeirismo, com o qual Lima Barreto, a partir de suas análises e críticas da sociedade carioca, se impacientava: “Se toda exploração do pobre, do mulato, do caboclo, do nosso povo, o constrangia, de igual modo o irritava a sua contraparte, fatal nas burguesias periféricas, que é o mimetismo de modas e signos comprados aos centros de prestígio” (BOSI, 1992, p.269).

O autor caracterizou-se por produzir obras que se aproximaram do estilo naturalista, sem, todavia, o rigor científico característico de tal escola literária[2]. Ainda sim, ele conseguiu registrar com minúcia muitos aspectos da vida social e política do Rio de Janeiro no tempo da Primeira República, fornecendo um painel interessante da sociedade fluminense, a partir da expressão de alguns de seus personagens: o burocrata, o escriturário, o jornalista, o artista, o militar de baixa patente, o imigrante. Essa seção conclui ainda que, apesar de influenciado pela obra de Machado de Assis, Dostoievski e dos positivistas franceses, como Taine e Brunetière, Lima Barreto se configura como um dos autores mais independentes de nossa ficção, acreditando na literatura como expressão direta dos sentimentos e idéias pessoais do escritor, dando, assim, um lance autobiográfico a quase todos os seus romances.

As obras barretianas, em geral, tecem ácidas críticas ao espírito social do final do século XIX e início do século XX, calcado no ideal do ‘progresso’ veiculado pelos partidários da República. Segundo Melo (2003), a proclamação da República ensejou a substituição dos fazendeiros e antigos proprietários pelos especuladores do encilhamento, pelos militares e pelos propagandistas de uma nova fé, novos homens que, aos olhos dos monarquistas, eram a sombra da decadência, frutos da desordem dos novos tempos, não guardando maneiras e estilos, sendo rudes e grosseiros. Esses novos personagens cultivavam uma crença obsessiva nas idéias de progresso e civilização, fazendo emergir valores obscuros e uma ética duvidosa (MELO, 2003).

Nascido sob a égide do regime imperial, Lima Barreto não via com bons olhos os rumos das transformações sociais, políticas, econômicas, culturais e espaciais do final do século XIX, acreditando no efeito devastador da febre de enriquecimento a todo custo – arrivismo – substituindo os padrões morais e de honestidade dos homens da época imperial. É essa sociedade degringolada, bem como a cidade em que atua, o elemento de interpretação do autor carioca, marcando suas obras ficcionais com um tom pessimista acerca da instabilidade social e econômica marcante dos primeiros anos do regime republicano, permitindo-lhe considerar os espaços da cidade como locais de sofrimento e tortura.

Esse comportamento interessado exclusivamente em galgar posições a partir do enriquecimento a qualquer custo sempre preocupou e enojou Lima Barreto, sendo notado inclusive no meio intelectual: ainda estudante da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, o escritor relata, em seu Diário Íntimo (1899), o estranhamento que tivera da multidão e dos estudantes, filhos de uma geração que tivera a ascensão social proveniente do encilhamento (MELO, 2003). Essa geração de arrivistas, nascida com a República e acomodada à nova situação, é alvo das críticas irreverentes de Lima Barreto, apesar de essa nova elite desvencilhar-se das acusações de corrupção, fraudes eleitorais, desrespeito aos trabalhadores e falcatruas com um novo discurso:

Enquanto a imprensa e a literatura da época denunciava (sic!) o “arrivismo agressivo” e a “corrupção destemperada” os políticos republicanos pintavam um quadro idílico a respeito do novo regime de governo que eles diziam estar fundado na “honestidade”, na ordem, na “felicidade” e no “progresso” (MELO, 2003, p.546, grifos da autora).

Sentindo na pele o preconceito e a privação, simpático para com os humilhados, ofendidos e os suburbanos e crítico corrosivo contra a burguesia bem posta na vida, a hipocrisia e as falsas aparências, Lima Barreto sentia-se como o jovem Isaías, de sua obra Recordações do escrivão Isaías Caminha. Como comenta Bosi (1992), este personagem, ao entrar na cidade grande, metaforiza a condição intelectual do mestiço ou negro, que se percebe ao mesmo tempo livre e confinado sob a cor da pele, com “a sensação de estar em país estrangeiro”; eis a situação do escritor: um “estrangeiro” na sociedade carioca de sua época.

Triste Fim de Policarpo Quaresma: noções de estilo e discurso geográfico

Triste Fim de Policarpo Quaresma foi publicado em folhetim em 1911, ganhando uma versão em livro em 1915. Esse romance é um dos herdeiros do Naturalismo, preocupando-se em apresentar uma sátira do Brasil oficial, analisado sob a ótica de um patriota exaltado – o major Quaresma. A narração pauta-se na vida de um modesto funcionário público, em três estágios diferentes, correspondentes, mais ou menos, às três partes da obra: a sua vida como funcionário público; as suas aventuras enquanto proprietário rural; e, por fim, a sua vida como soldado voluntário da Revolta da Armada, de 1893. Paralelamente ao destino de Policarpo Quaresma, o romance também enfoca o universo fluminense em três níveis diferentes e complementares: a vida simples do subúrbio da capital; o cotidiano familiar e político da zona rural; e a atmosfera política da Primeira República.

Você, Quaresma, é um visionário...”! Essa frase expressiva dá a tônica principal do personagem Quaresma, um visionário, sonhador, patriota exaltado, dominado pela idéia de um Brasil acolhedor e amável. Ufanista, ele vê o país como um recanto de farturas, facilidades, compreensão e amor, visão que orienta o seu projeto de reforma nacional, dividido, assim como a obra e a vida do protagonista, em três etapas: uma reforma cultural, uma reforma agrícola, e, por fim, uma reforma política. O resultado dessa caminhada ufanista é a constatação de um país inóspito, precário, infecundo, cruel, autoritário e odioso. Destarte, parte-se da concepção mítica do Brasil, e, a partir dela, desconstrói-se esse mito romântico conforme uma postura de comprovação da distância entre o sonho e o Real, tornando a concretização dos idealismos inconseqüentes, uma utopia irrealizável.

Lima Barreto, por meio do sonho patriótico de Policarpo Quaresma, também pôde expor algumas temáticas fundamentais para a formação de seu ideário pré-modernista. A crítica à posição negativa do brasileiro médio em relação ao colonizador europeu; a exaltação à terra; a idealização da natureza virgem; a pesquisa folclórica; a denúncia contra o preconceito racial; a paródia da máquina burocrática estatal; e o repúdio aos falsos artistas. Aproveitando-se da sua experiência enquanto funcionário público, Lima Barreto transportou para sua obra uma crítica pautada em sua vivência, caracterizando, de modo detalhado, os traços desse modelo de serviço; esse retrato do funcionalismo público – cujo representante mais destacado é o próprio presidente da República – alicerça-se em uma visão caricatural, representando uma alegoria contra a burocracia, formada por pessoas sem consistência moral ou profissional, como os generais sem batalha ou os almirantes sem navio (individualizados, respectivamente, nas figuras de Albernaz e Caldas).

Esse quadro caricatural estendido aos militares brasileiros é bastante explorado por Lima Barreto, entendendo-os, em grande parte, como interesseiros e mesquinhos, sem preocupações verdadeiras e profundas com o engrandecimento da pátria. Segundo Bittencourt (1956 apud MELO, 2003) formou-se, durante a Regência, uma polícia que atuaria na sua “zona de influência”, composta de homens de autoridade moral, (os militares da Guarda Nacional ligados aos latifundiários), debelando o espírito de dissolução da pátria; no Segundo Reinado, essa Guarda Nacional recebeu grande importância, sendo uniformizada e regulamentada, recebendo privilégios e elevando o rendimento provindo das patentes, transformando a categoria numa das principais receitas do orçamento nacional. Segundo Melo (2003), Lima Barreto vê com pesar e desilusão a continuidade das velharias que deveriam ser superadas.

Esses personagens do quadro militar brasileiro são alvos das críticas de Lima Barreto, que repudia a mercantilização do prestígio e do poder a partir do pagamento de emolumentos, como ocorria com a compra dos títulos nobiliárquicos na nobreza européia medieval; o próprio Quaresma é incorporado nesse vício nacional de tratamento dos considerados “homens superiores”, sendo resguardado, porém, pelo autor como um caso mal-entendido:

Quaresma então explicou, por que o tratavam por major. Um amigo, influência do ministério do Interior, lhe tinha metido o nome numa lista de guardas-nacionais, com esse posto. Nunca tendo pago os emolumentos, viu-se, entretanto, sempre tratado major, e a coisa pegou. A princípio, protestou, mas como teimassem deixou (BARRETO, 1997, p.129).

Triste Fim de Policarpo Quaresma assume uma postura iconoclasta, desrespeitando e dessacralizando as tradições. Por isso, essa obra afasta-se das obras românticas e se aproxima do Realismo e do Naturalismo do final do século XIX. Apesar de não manter-se preso aos rigores naturalistas, Lima Barreto ainda trabalha com o conceito de literatura como instrumento de denúncia social, dando, às vezes, um enfoque panfletário às suas obras. Essa arte engajada na defesa dos princípios humanitários é expressa nos ataques ao positivismo republicano e na defesa da massa sofredora, localizados, especialmente, no último capítulo da segunda parte e em toda a terceira parte; outro exemplo do engajamento encontra-se na descrição afetuosa de Lima Barreto/Policarpo Quaresma das pessoas humildes, seja do subúrbio carioca ou das personagens secundárias da roça de Quaresma, localizada no território fluminense. O que fica claramente exposto, em ambos os casos, é o registro simples e objetivo da realidade, destacando os contrastes e desigualdades entre os dois “Brasis”: o rico e o pobre. é essa postura que é valorizada amplamente nas obras pré-modernistas, das quais Triste Fim de Policarpo Quaresma é uma das suas maiores expressões.

Lima Barreto apresenta sua postura contrária ao positivismo e, consequentemente, aos seus desígnios e ditames para o progresso e a modernização do país, considerando-o como uma fé cega, exercida por fanáticos:

Os militares estavam contentes, especialmente os pequenos, os alferes, os tenentes e os capitães. Para a maioria a satisfação vinha da convicção de que iriam estender a sua autoridade sobre o pelotão e a companhia, a todo esse rebanho de civis; mas, em outros muitos havia sentimento mais puro, desinteresse e sinceridade. Eram os adeptos desse nefasto e hipócrita positivismo, um pedantismo tirânico, limitado e estreito, que justificava todas as violências, todos os assassínios, todas as ferocidade em nome da manutenção da ordem, condição necessária, lá diz ele, ao progresso e também ao advento do regime normal, a religião da humanidade, a adoração do grão-fetiche, com fanhosas músicas de cornetins e versos detestáveis, o paraíso enfim, com inscrições em escritura fonética e eleitos calçados com sapatos de sola de borracha!...

Os positivistas discutiam e citavam teoremas de mecânica para justificar as suas idéias de governo, em tudo semelhante aos canatos e emirados orientais (BARRETO, 1997, p.115).

Com uma grande sensibilidade analítica o autor descreve os subúrbios cariocas, mostrando a (des)organização do espaço, fruto de uma urbanização galopante e de um crescimento demográfico desordenado. A todo momento, o escritor compara o espaço urbano carioca aos espaços urbanos europeus, sob a perspectiva de criticar indiretamente a postura da capital nacional em se espelhar obsessivamente no exterior ou mesmo de censurar a visão positivista de consolidação do Brasil como um país “nos trilhos da modernidade e da civilização”, ideais referenciados na Europa Ocidental, os quais, confrontados com a realidade, não se confirmavam.

Os subúrbios do Rio de Janeiro são a mais curiosa coisa em matéria de edificação de cidade. A topografia do local, caprichosamente montuosa, influi decerto para tal aspecto, mas influíram, porém, os azares das construções.

Nada mais irregular, mais caprichoso, mais sem plano qualquer, pode ser imaginado. As casas surgiram como se fossem semeadas ao vento e, conforme as casas, as ruas se fizeram. Há algumas delas que começam largas como boulevards e acabam estreitas que nem vielas; dão voltas, circuitos inúteis e parecem fugir ao alinhamento reto com um ódio tenaz e sagrado.

Às vezes sucedem na mesma direção com uma freqüência irritante, outras se afastam, de deixam de permeio um longo intervalo coeso e fechado de casas. Num trecho, há casas amontoadas umas sobre as outras numa angústia de espaço desoladora, logo adiante um vasto campo abre ao nosso olhar uma ampla perspectiva. [...]

Não há nos nossos subúrbios coisa alguma que nos lembre os famosos das grandes cidades européias, com as suas vilas de ar repousado e satisfeito, as suas estradas e ruas macadamizadas e cuidadas, nem mesmo se encontram aqueles jardins, cuidadinhos, aparadinhos, penteados, porque os nossos, se os há, são em geral pobres, feios e desleixados (BARRETO, 1997, p.78).

Antes que proceder a uma crítica aos subúrbios, Lima Barreto descreve esse espaço urbano como uma forma de dar vazão às suas observações perspicazes, desenterrando os “homens do subterrâneo”, trazendo-os à tona, mostrando as suas “caras” e as suas condições de vida. Simpático a essa classe dos humilhados e dos pobres, o escritor pretende retratar o destino do genuíno brasileiro, ignorado pelas classes dirigentes.

Esse entendimento da formação nacional brasileira, do “habitat” urbano, representa um ponto de maturidade desse escritor, cético quanto aos modelos simplesmente racionais de organização do espaço, compreendendo que a expressão espacial da sociedade também era fruto de decisões e vontades políticas. Essas descrições geográficas também se desenvolvem para os espaços urbanos das vilas, dos interiores rurais e para as “roças” da zona rural: “O que mais a [Olga] impressionou no passeio foi a miséria geral, a falta de cultivo, a pobreza das casas, o ar triste, abatido da gente pobre” (BARRETO, 1997, p.97). Nesses rincões, onde se manifestavam os caboclos e típicos brasileiros, Lima Barreto mostra sua descrença para explicar a situação de miséria e penúria da população por explicações referenciadas no evolucionismo spenceriano ou no darwinismo social: “Não podia ser preguiça só ou indolência. Para o seu gasto, para uso próprio, o homem tem sempre energia para trabalhar” (BARRETO, 1997, p.97).

A esse respeito, creditava a pobreza da grande massa populacional brasileira (ligada ao rural) ao objetivo da administração republicana em beneficiar e enriquecer exclusivamente a antiga nobreza agrícola e conservadora, reservando-lhe, por exemplo, pagamentos de tributos, pagamentos dos custos da imigração e auxílios à lavoura (BOSI, 1992).

Seguindo o ideal estético de Lima Barreto, Triste Fim de Policarpo Quaresma pauta-se na objetividade, em frases comuns e em uma narrativa simples, espontânea e natural. Há uma passagem na própria obra que versa sobre a leitura ‘hermética’ criticada pelo autor:

De fato, ele [Armando Borges] estava escrevendo ou mais particularmente: traduzia para o clássico um grande artigo sobre “Ferimentos por armas de fogo”. O seu último truque intelectual era este do clássico. Buscava nisto uma distinção, uma superação intelectual desses meninos por aí que escrevem contos e romances nos jornais. Ele, um sábio, e sobretudo um doutor: não podia escrever da mesma forma que eles. A sua sabedoria superior e o seu título acadêmico não podiam usar da mesma língua, dos mesmos modismos, da mesma sintaxe que esses poetastros e literatos. Veio-lhe então a idéia do clássico. O processo era simples: escrevia do modo comum, com as palavras e o jeito de hoje, em seguida invertia as orações, picava o período com vírgulas e substituía incomodar por molestar, ao redor por derredor, isto por esto, quão grande ou tão grande por quamanho, sarapintava tudo de ao invés, empós, e assim obtinha o seu estilo clássico que começava a causar admiração aos seus pares e ao público em geral (BARRETO, 1997, p.131, grifos do autor).

Essa passagem se refere a Armando Borges, um médico sem talento ou convicção científica que, para parecer mais importante e obter prestígio, compilava as noções de Medicina em artigos com expressões eruditas, copiadas dos clássicos, as quais ele não entendia ou assimilava seus significados. Assim, ao criticá-lo, Lima Barreto adota uma postura totalmente contrária para com o estilo artificial e caricatural da Belle Époque brasileira – personificada, por exemplo, em Rui Barbosa, Coelho Neto, Afrânio Peixoto e Alberto de Oliveira – modelo que decididamente evitava. De fato, o romance – assim como toda a obra de Lima Barreto – adotou um viés da leitura fácil e dinâmica. Esse caráter transmitiu ao Modernismo como captar de maneira viva a agitação das ruas do Rio de Janeiro, expressa nas mais diversas camadas da população: o burocrata, o escriturário, os moleques, os oficiais, os soldados, o imigrante, a dona de casa, a moça preocupada com a moda, o seresteiro, a ex-escrava, os trabalhadores.

O diletantismo é alvo constante de crítica nas obras barretianas. Conforme Melo (2003), a república deu continuidade à “superstição do doutor”, a qual Lima Barreto tinha verdadeiro horror pelo fato dos bacharéis serem arrogantes; os doutores se consideravam acima de todos os reles mortais, obtendo privilégios especiais, constantes nas leis ou consignados nos costumes. O fetiche do diploma permitira que os cargos técnicos e de direção passassem para os “doutores”, criando novos cargos para eles e passando por cima daqueles de verdadeira competência, os quais exerciam suas profissões por experiência e talento (MELO, 2003). Entretanto, ante a sagacidade crítica de Lima Barreto, essa postura de semideuses era totalmente injustificada diante do artificialismo e do superficialismo dos conhecimentos e saberes desses “doutores”.

Para além da contribuição estilística, a obra Triste Fim de Policarpo Quaresma guarda no discurso, concepções ideológicas interessantes acerca dos projetos de Policarpo Quaresma para salvar o país. Na primeira parte, a vida do funcionário público é relatada, com seus hábitos arraigados e conservadores no subúrbio do Rio; sua obsessão, naquele momento, era salvar o país por uma reforma nos costumes (uma reforma pela cultura). Imbuído nesse intuito, o protagonista pôs-se a estudar folclore e o tupi-guarani, pois acreditava que o homem brasileiro deveria se expressar fundamentalmente a partir de suas raízes – ou seja, como os primitivos tupinambás – e não como os europeus. Nesse sentido, fica clara a intenção de resgate de uma cultura vernácula, expressada magistralmente pela intenção em substituir a língua (claramente uma das manifestações culturais mais fortes) portuguesa pelo tupi, o qual, enquanto língua original brasileira, deveria ser amplamente estudado e aprendido a fim de transformar-se na língua oficial.

Essa postura ufanista acaba rendendo ao major Quaresma um estatuto de loucura, sendo metido, então, em um sanatório. Ao sair do hospício, Quaresma havia desistido do seu intuito de reformar o país pelos costumes, acreditando na solução a partir de uma reforma da agricultura; para tanto, ele adquire o Sítio Sossego para servir, aos compatriotas, de exemplo da fecundidade da terra brasileira – meio de conseguir o avanço brasileiro, a tão sonhada modernidade. Todavia, em pouco tempo ele é vencido pela má qualidade da terra, pelas saúvas e pela mesquinharia da política local. Arrasado, ele decide voltar para o Rio de Janeiro para salvar a Pátria do perigo representado pela Revolta da Armada, que eclodira na capital brasileira. Assim, envia um telegrama ao próprio presidente, com os seguintes dizeres: “Marechal Floriano. Rio. Peço energia. Sigo já. Quaresma”.

A partir desse ponto, desenrola-se a terceira parte da obra, na qual Quaresma tenta transformar o país a partir de uma reforma política. Alistando-se ao Exército a favor de Floriano Peixoto, Policarpo Quaresma foi designado para comandar um batalhão de 40 soldados. Obtém uma entrevista com o presidente da República, mas sai absolutamente decepcionado com a figura displicente e preguiçosa do líder, desacreditando nas reformas políticas do florianismo. Abafada a revolta, é enviado para a Ilha das Enxadas, com a função de carcereiro, onde presencia um sumário fuzilamento, por ordens expressas de Floriano Peixoto, dos prisioneiros de guerra, ex-membros da Marinha. Quando Quaresma toma consciência da manobra, redige uma carta de censura ao presidente, exigindo dele que se respeitassem os direitos humanos dos rebeldes. Em conseqüência de sua carta, o grande florianista é preso e enviado para a Ilha das Cobras, onde teria o mesmo fim dos prisioneiros por cujos direitos protestara.

Eis, então, o triste fim de Policarpo Quaresma, o major visionário (nas próprias palavras do autoritário Floriano Peixoto), morto efetivamente por subversão ao governo, mas que, de fato, morrera bem antes disso ao ver cada um dos seus projetos de construção do futuro para o país sucumbirem diante das dificuldades do Real. Por conseguinte, o discurso expresso dá indícios de um pessimismo, com a morte da própria idealização de um país progressista, pautado no nacionalismo e no respeito ao seu povo humilde; o que vence, enfim, é o autoritarismo e uma sociedade que, em geral, não tem conhecimento de si mesma, delegando aos dirigentes do país as rédeas dos destinos nacionais.

Conforme Bosi (1992), o desfecho de Quaresma é marcado por um anticlímax devastador, em termos psicológicos e de funeral de uma ideologia que foi desmoronada pelo contato com o real.

Apesar de pessimista, o final de Policarpo Quaresma talvez não signifique o final absoluto de um sonho de modernização para o país: a obra termina com um tom de uma frágil esperança que brota no meio das reflexões de Olga – a afilhada de Quaresma – em relação à sociedade brasileira e às suas transformações ao longo do tempo. É preciso então, nas suas concepções, que o espaço, a mentalidade e os valores mudem para que os esforços de Quaresma sejam enfim reconhecidos. Assim, a última frase inicia-se com um “Esperemos mais...”, denotando não a morte, mas o adiamento da constituição de uma pátria verdadeiramente livre, original e mãe do seu povo como queria Policarpo Quaresma e, por que não dizer, o próprio Lima Barreto.

Considerações Finais

Os textos literários, em geral, não são discursos neutros em relação ao momento político em que são escritos: ao contrário, expressam, explícita ou implicitamente, determinadas orientações sociais, políticas, culturais, econômicas e espaciais que buscam legitimidade e materialização no Real. Essa parcialidade advém da própria condição do escritor, integrante de uma determinada posição social e adepto de crenças científico-filosóficas e artísticas específicas.

Acreditando nessa parcialidade dos textos literários, e reconhecendo os literatos brasileiros como legítimos representantes da intelectualidade brasileira, resgatar os discursos e as visões de mundo entranhadas nos enredos literários significa apreender o entendimento desses artistas no que se refere à realidade nacional, revelando elogios, críticas e anseios para modificar a estrutura nacional nos aspectos econômico, social, político, cultural e espacial. No momento histórico brasileiro do final do século XIX e início do século XX, esses discursos também veiculavam os projetos dos intelectuais para a modernização do Brasil.

Foi inserido na proposta pré-modernista de descoberta do Brasil não-oficial que o escritor carioca Afonso Henriques de Lima Barreto desenvolveu a sua poesia militante, opondo-se, com uma escrita objetiva e jornalística e com uma agudeza crítica quanto à organização socioespacial, à maioria de seus contemporâneos. Como uma arma, as palavras na obra de Lima Barreto serviram para atingir diretamente os valores burgueses, injustos e autoritários, que se destacavam nos anos iniciais da República; assim, com um caráter de denúncia, as obras barretianas enfocavam, em essência, a discriminação social e racial, o vazio moral, intelectual e ético dos políticos, a ganância e ambição, o arrivismo, o bovarismo a miséria e a opressão social.

Simpático aos humilhados e oprimidos das classes menos favorecidas, e sentindo na pele a humilhação e a exclusão por sua condição de mulato, Lima Barreto transformou-se em um cético das ideologias ‘progressistas’ de sua época, causando profundas alterações sociais, políticas, econômicas, culturais e espaciais. Acreditando na decadência moral e intelectual de uma sociedade que só buscava “copiar” valores exógenos, ele lançou traços biográficos em todas as suas obras, reproduzindo críticas e preocupações para com a sociedade fluminense – e por extensão, para com a sociedade brasileira – do final do século XIX e início do século XX. Uma dessas obras, Triste Fim de Policarpo Quaresma, apresenta as concepções de Lima Barreto/Policarpo Quaresma acerca dos projetos de modernização do país, considerando com perspicácia a organização social, intelectual e espacial do Rio de Janeiro do início do regime republicano.

Triste Fim de Policarpo Quaresma apresenta-se, enfim, como uma literatura de tom irônico aos valores arrivistas, diletantes e mesquinhos da sociedade, à desorganização espacial e à discriminação dos habitantes dos subúrbios, além de expressar uma devastadora ruptura com o quixotesco sonho do protagonista de ver a ascensão da pátria – isto é, de efetivar-se uma modernização concreta para o país. Essa obra, portanto, ao resgatar como Lima Barreto entendia o que era e como deveria ser o Brasil, apresenta-se como um importante recurso de compreender o pensamento intelectual naquele momento histórico, resgatando as transformações socioespaciais que estavam em curso, bem como quais dos pensamentos e projetos de modernização que compunham a estrutura intelectual brasileira à época encontraram legitimação política e, consequentemente, materialização no Real.

Referências

BARRETO, Afonso Henriques de Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Klick, 1997. 191p. (Coleção Ler É Aprender, n.18, O Estado de S. Paulo).

BOSI, Alfredo. O Pré-Modernismo. 4.ed. São Paulo: Cultrix, 1973. Série: A Literatura brasileira.

BOSI, Alfredo. Sob o signo de Cam. In: ______. Dialética da colonização. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 246-272.

CANDIDO, Antônio. Literatura e sociedade. 5.ed. São Paulo: Nacional, 1976.

CANDIDO, Antônio. Literatura de dois gumes. In: ______. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987.

DE NICOLA, José. Literatura Brasileira: da origem aos nossos dias. 15.ed. São Paulo: Scipione, 1998.

INFANTE, Ulisses. Curso de Literatura de Língua Portuguesa. São Paulo: Scipione, 2001.

MACHADO, Lia Osório. Origens do pensamento geográfico no Brasil: meio tropical, espaços vazios e a idéia de ordem (1870-1930). In: CASTRO, Iná Elias; GOMES, Paulo César da Costa; CORRÊA, Roberto Lobato. Geografia: Conceitos e Temas. 8.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. p.309-352.

MELO, Rita. Lima Barreto, a cidade e os “homens do subterrâneo” nos primeiros anos da República. História e Perspectivas, Uberlândia, n.27/28, p.537-556, jul./dez.2002; jan./jun. 2003. ISSN 0103-409X.

MILLIET, Sérgio. Noticiário. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 11 nov. 1948.

PENTEADO MARTHA, Alice Áurea. Lima Barreto e a crítica (1900-1922): a conspiração de silêncio. Acta Scientiarum, Maringá, v.22, 2000. ISSN 1415-6814. Disponível em: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/ActaSciHumanSocSci/issue/view/236. Acesso em: jan. 2009.

ROSSO, Mauro. O conto em Lima Barreto. Junho/2006. Disponível em: http://www.germinaliteratura.com.br/literaturamr_mai2006.htm. Acesso em: jan. 2009.



[1] Trechos transcritos do artigo “Amplius!”, publicado originalmente na primeira edição da revista Floreal, em 25 de outubro de 1907, e depois em A Época, em 18 de fevereiro de 1916, sendo incorporado como abertura da coletânea de contos História e sonhos, nas suas três edições.

[2] Consoante a seção É Help! Para entender Triste Fim de Policarpo Quaresma, da obra Triste Fim de Policarpo Quaresma (1997).

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TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA

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Comissão da Verdade passa inalterada em primeiro teste no Senado

Projeto é aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) por unanimidade, em grande acordo entre governo e oposição. Parecer do ex-guerrilheiro Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP) faz apenas mudanças de redação em texto da Câmara. Governo planeja abreviar tramitação e levar projeto direto ao plenário. Dilma Rousseff quer investigação concluída até 2014.

BRASÍLIA - A Comissão de Constituição de Justiça (CCJ) do Senado aprovou nesta quarta-feira (19), por unanimidade, com amplo consenso entre governistas e oposicionistas, projeto que cria uma Comissão da Verdade para investigar atentados aos direitos humanos por razões políticas praticados no Brasil entre 1946 e 1988.

O parecer do senador Aloysio Nunes (PSDB-SP), que militou contra a ditadura, não incorporou sugestões apresentadas na véspera por entidades e familiares de mortos e desaparecidos políticos. Ele fez só duas mudanças de redação no texto aprovado na Câmara, as quais não alteram a essência da proposta.

No extenso parecer, de 20 páginas, o tucano rebateu uma a uma as críticas feitas ao projeto do governo aprovado pelos deputados. Diz, por exemplo, que não seria necessário mudar a data da Comissão para dar foco à ditadura militar (1964 a 1985), porque isso vai acontecer naturalmente durante as investigações.

Apesar disso, senadores favoráveis a mudanças disseram que não vão desistir de modificar o projeto, que, em tese, ainda passará por mais duas comissões e pelo plenário do Senado.

O líder do governo no Senado, Romero Jucá (PMDB-RR), informou, porém, que vai apresentar um pedido para que o projeto seja votado diretamente em plenário, sem exame em outras comissões.

É a mesma tática usado na Câmara pelo governo, que acha que é melhor aprovar o projeto sem demora e grandes debates, para não levantar resistências adormecidas na sociedade.

"Vou apresentar emendas, mas não quero atrasar nenhum um minuto a tramitação deste projeto, pois o Brasil já esperou 25 anos por ele", afirmou o senador Randolfe Rodrigues (PSol-AP).

O senador Pedro Taques (PDT-MT) foi um dos que reclamaram do período da Comissão - e também da possbilidade de participação de militares nos trabalhos. Ele elogiou o relatório mas acha que o parecer não traz mecanismos desejados pela sociedade. "Este é um relatório feito para buscar a paz. Mas, mais do que isso, nos precisamos é de justiça", defendeu.

"Nós temos feridas sim na nossa sociedade, que ainda estão abertas para muitos. Elas não serão sanadas com punições, mas certamente serão minimizadas com conhecimento", disse a senadora Marta Suplicy (PT-SP), que foi só elogios ao parecer. "São muitas as famílias que não sabem o paradeiro de seus familiares."

O outro senador Suplicy petista da Comissão, Eduardo, também elogiou o parecer de Aloysio Nunes, que com o texto já teria justificado o mandato. Para ele, foi importante ter havido uma resposta às ponderações feitas na véspera durante audiência pública por familiares de mortos e desaparecidos. "Partidos de oposição e sustentação se unem para dar um passo muito significativo", disse.

Representante oposicionista na CCJ, Demóstenes Torres (DEM-GO) classificou a comissão como "essencial" para o país. "O Brasil cumpriu bem seu papel ao aprovar uma Lei da Anistia e ao criar comissões que tentaram reparar os erros cometidos", disse o demista.

Pelo projeto, a Comissão da Verdade terá dois anos de prazo para concluir as invetigações e produzir um relatório. A presidenta Dilma Rousseff quer receber o relatório antes de encerrar o mandato.

Arquivologia/ História


"O Brasil ainda não abriu os arquivos da Guerra do Paraguai"

Em entrevista à Carta Maior, o jornalista argentino Horacio Verbitsky, um dos maiores conhecedores dos sistemas repressivos na América Latina, analisa o peso dos arquivos na busca da verdade e da justiça, detalha o funcionamento da 'multinacional do crime' que foi a Operação Condor e destaca as particularidades que fazem do Brasil um país que ainda guarda documentos secretos sobre a ação dos militares nos anos de chumbo. "O Brasil é o caso mais extremo no Cone Sul, ainda mantém em segredo os arquivos da Guerra do Paraguai".

Horacio Verbitsky é uma comissão de verdade em si mesmo. A dívida da sociedade argentina com esse jornalista investigativo que revelou os rincões mais obscuros da repressão da última ditadura militar é enorme. Diretor do Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS), autor de cerca de 20 livros e de investigações jornalísticas de muito peso, Verbitsky é um dos mais finos conhecedores dos sistemas repressivos na América Latina. Suas obras e seu trabalho a frente do CELS lhe valeram numerosos reconhecimentos internacionais, entre eles o prêmio da Fundação Konrad Adenauer e o da Comissão Nacional Consultiva dos Direitos Humanos da França.

Por meio do CELS, cuja vocação é a promoção e proteção dos direitos humanos e o fortalecimento do sistema democrático na Argentina, Verbitsky promoveu numerosas causas contra os repressores argentinos. Ele é autor de uma das revelações mais horripilantes da recente história argentina. No livro “El vuelo” (“O Voo”), Horacio Verbitsky traz o testemunho de Adolfo Scilingo, um militar que contou em detalhes a metodologia de extermínio empregada pelos militares para eliminar os opositores na última ditadura militar. “El Vuelo” narra todo o pavoroso processo dos sequestros, as torturas, o envolvimento da Igreja Católica e a participação dos médicos naquilo que seria a solução final: lançar no mar as pessoas sequestradas.

Em entrevista à Carta Maior, Verbitsky analisa o peso dos arquivos na busca da verdade e da justiça, detalha o funcionamento dessa multinacional do crime que foi a Operação Condor e destaca as particularidades que fazem do Brasil um país que ainda guarda em documentos secretos a implicação de suas forças armadas nos anos de chumbo.

Qual foi a importância dos arquivos da Operação Condor para que avançassem os julgamentos dos repressores? E, de um modo mais amplo, em que medida a desclassificação dos arquivos norte-americanos serviu para entender melhor o funcionamento desse dispositivo repressor?

A Operação Condor foi organizada por chilenos, argentinos, brasileiros, uruguaios, paraguaios e peruanos. Os arquivos norte-americanos serviram para confirmar que os estadunidenses sabiam da existência da Operação Condor e constatar a forma pela qual Washington interviu nessa operação.

Por exemplo, os documentos dão conta de uma reunião no Chile, em junho de 1976, entre o então secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, e o vice-almirante argentino César Guzzetti. Eles voltaram a se encontrar em Nova York, em novembro-dezembro do mesmo ano. Nas duas vezes, Guzzetti contou a Kissinger o que estavam fazendo com a repressão e Kissinger respondeu dizendo: “façam, mas terminem rápido”.

Nós usamos muitos desses documentos nos julgamentos. Eles foram muito úteis como peças para completar quebra-cabeças. Esses documentos não eram provas em si mesmo, mas se encaixavam com outras coisas que estavam sendo investigadas. A divulgação dos arquivos é essencial para facilitar que seja feita a justiça. Mas não é tudo. Na Argentina, a justiça avançou muito – diria que mais que em qualquer outro lugar do mundo -, mas avançou apesar de não haver arquivos.

A Argentina é a prova de que o arquivo é útil, mas não imprescindível. O que ocorre é que, sem o arquivo, depende-se da reconstrução oral, do testemunho do sobrevivente, e isso faz com que muita gente escape porque não há quem testemunhe contra eles, porque mataram as vítimas.

Os arquivos também servem para afinar um pouco a direção da busca. A falta de arquivo pode levar a que se queira julgar todo mundo, ou seja, como houve um genocídio, quem estava ali era responsável. Nós, no CELS, defendemos que têm que existir provas concretas da participação de uma pessoa.

No caso do Brasil, neste momento há um forte debate sobre a abertura ou não dos arquivos da ditadura.

O caso do Brasil é o caso mais extremo no Cone Sul, um caso extremo de segredo e de obscuridade. O Brasil ainda mantem em segredo os arquivos da Guerra do Paraguai, um fato que ocorreu há um século e meio. No que diz respeito à ditadura, e comparando com o que aconteceu na Argentina, há vários fatores que explicam isso. Por um lado, comparativamente com a Argentina, no Brasil a quantidade de vítimas é ínfima. O Brasil tem uma população várias vezes superiores a da Argentina e teve menos de 150 pessoas desaparecidas. O que houve sim foram milhares de torturados. Isso foi muito bem investigado pelo Arcebispo de São Paulo, Paulo Evaristo Arns. Ele conseguiu ver arquivos e atas ainda que não estivessem abertos oficialmente.

Em segundo lugar, isso também se explica porque, no contexto do princípio desenvolvimentista, no Brasil houve um governo em sucedido. Em troca, na Argentina, foi um fracasso. A outra diferença entre os dois países radica igualmente no fato de que, enquanto o Brasil teve relações amistosas com as potências, a Argentina viveu uma guerra com a Grã-Bretanha (as Malvinas) e os Estados Unidos. Com isso, a possibilidade de que os militares brasileiros mantenham os arquivos fechados tem sido e é muito forte. Uma ditadura como a argentina que massacrou um percentual muito alto de pessoas e que, além disso, fracassou economicamente e perdeu uma guerra contra a Grã-Bretanha, não está em condições de manter segredos de Estado.

Mas não faltou vontade política por parte dos sucessivos governos, começando pelo de Lula?

O governo de Lula não teve muito entusiasmo para mexer nesse tema. Vários fatores explicam isso: a experiência pessoal sindical de Lula, que não tem muito a ver com a de Dilma. Pode ser que isso tenha influído. Mas, de modo mais geral, no Brasil não há um grande interesse por esses temas. A sociedade não se interessa muito, é um tema que não provoca entusiasmo.

Eu tenho uma experiência muito concreta. Meu livro “El Vuelo”, que traz as confissões de Adolfo Scilingo sobre como se jogavam no mar os presos na ESMA (Escola Mecânica da Armada), foi traduzido para muitos idiomas, mas a edição que menos repercussão teve foi a brasileira. O livro teve mais repercussão na Itália, na Inglaterra, na França ou nos EUA do que no Brasil.

Há, então, no Brasil, uma espécie de bloqueio político.

Sim, sim, muito claro.

A Operação Condor foi uma autêntica coordenação entre as ditaduras do Cone Sul. Seguirá sendo um fato pouco comum na história latino-americana?

Foi uma coordenação das ditaduras da Argentina, Chile, Brasil, Paraguai, Uruguai e Peru. Essas ditaduras compartilhavam informação de inteligência e também operativos de inteligência. Há argentinos detidos no Chile, no Uruguai, no Peru e no Brasil que foram entregues às forças armadas argentinas para serem assassinados. E na Argentina, também operaram forças dos outros países. Houve um campo de concentração em Buenos Aires que se chamava Automotores Orletti, onde o grosso dos detidos era de uruguaios. Os repressores de Montevidéu vinham participar dos interrogatórios junto aos argentinos. Dali eram transportados a Montevidéu e decidiam quem vivia, quem morria e quem roubava as crianças. Foi uma colaboração muito estreita entre os governos.

Tradução: Katarina Peixoto


"O Brasil ainda não abriu os arquivos da Guerra do Paraguai"

Em entrevista à Carta Maior, o jornalista argentino Horacio Verbitsky, um dos maiores conhecedores dos sistemas repressivos na América Latina, analisa o peso dos arquivos na busca da verdade e da justiça, detalha o funcionamento da 'multinacional do crime' que foi a Operação Condor e destaca as particularidades que fazem do Brasil um país que ainda guarda documentos secretos sobre a ação dos militares nos anos de chumbo. "O Brasil é o caso mais extremo no Cone Sul, ainda mantém em segredo os arquivos da Guerra do Paraguai".

Horacio Verbitsky é uma comissão de verdade em si mesmo. A dívida da sociedade argentina com esse jornalista investigativo que revelou os rincões mais obscuros da repressão da última ditadura militar é enorme. Diretor do Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS), autor de cerca de 20 livros e de investigações jornalísticas de muito peso, Verbitsky é um dos mais finos conhecedores dos sistemas repressivos na América Latina. Suas obras e seu trabalho a frente do CELS lhe valeram numerosos reconhecimentos internacionais, entre eles o prêmio da Fundação Konrad Adenauer e o da Comissão Nacional Consultiva dos Direitos Humanos da França.

Por meio do CELS, cuja vocação é a promoção e proteção dos direitos humanos e o fortalecimento do sistema democrático na Argentina, Verbitsky promoveu numerosas causas contra os repressores argentinos. Ele é autor de uma das revelações mais horripilantes da recente história argentina. No livro “El vuelo” (“O Voo”), Horacio Verbitsky traz o testemunho de Adolfo Scilingo, um militar que contou em detalhes a metodologia de extermínio empregada pelos militares para eliminar os opositores na última ditadura militar. “El Vuelo” narra todo o pavoroso processo dos sequestros, as torturas, o envolvimento da Igreja Católica e a participação dos médicos naquilo que seria a solução final: lançar no mar as pessoas sequestradas.

Em entrevista à Carta Maior, Verbitsky analisa o peso dos arquivos na busca da verdade e da justiça, detalha o funcionamento dessa multinacional do crime que foi a Operação Condor e destaca as particularidades que fazem do Brasil um país que ainda guarda em documentos secretos a implicação de suas forças armadas nos anos de chumbo.

Qual foi a importância dos arquivos da Operação Condor para que avançassem os julgamentos dos repressores? E, de um modo mais amplo, em que medida a desclassificação dos arquivos norte-americanos serviu para entender melhor o funcionamento desse dispositivo repressor?

A Operação Condor foi organizada por chilenos, argentinos, brasileiros, uruguaios, paraguaios e peruanos. Os arquivos norte-americanos serviram para confirmar que os estadunidenses sabiam da existência da Operação Condor e constatar a forma pela qual Washington interviu nessa operação.

Por exemplo, os documentos dão conta de uma reunião no Chile, em junho de 1976, entre o então secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, e o vice-almirante argentino César Guzzetti. Eles voltaram a se encontrar em Nova York, em novembro-dezembro do mesmo ano. Nas duas vezes, Guzzetti contou a Kissinger o que estavam fazendo com a repressão e Kissinger respondeu dizendo: “façam, mas terminem rápido”.

Nós usamos muitos desses documentos nos julgamentos. Eles foram muito úteis como peças para completar quebra-cabeças. Esses documentos não eram provas em si mesmo, mas se encaixavam com outras coisas que estavam sendo investigadas. A divulgação dos arquivos é essencial para facilitar que seja feita a justiça. Mas não é tudo. Na Argentina, a justiça avançou muito – diria que mais que em qualquer outro lugar do mundo -, mas avançou apesar de não haver arquivos.

A Argentina é a prova de que o arquivo é útil, mas não imprescindível. O que ocorre é que, sem o arquivo, depende-se da reconstrução oral, do testemunho do sobrevivente, e isso faz com que muita gente escape porque não há quem testemunhe contra eles, porque mataram as vítimas.

Os arquivos também servem para afinar um pouco a direção da busca. A falta de arquivo pode levar a que se queira julgar todo mundo, ou seja, como houve um genocídio, quem estava ali era responsável. Nós, no CELS, defendemos que têm que existir provas concretas da participação de uma pessoa.

No caso do Brasil, neste momento há um forte debate sobre a abertura ou não dos arquivos da ditadura.

O caso do Brasil é o caso mais extremo no Cone Sul, um caso extremo de segredo e de obscuridade. O Brasil ainda mantem em segredo os arquivos da Guerra do Paraguai, um fato que ocorreu há um século e meio. No que diz respeito à ditadura, e comparando com o que aconteceu na Argentina, há vários fatores que explicam isso. Por um lado, comparativamente com a Argentina, no Brasil a quantidade de vítimas é ínfima. O Brasil tem uma população várias vezes superiores a da Argentina e teve menos de 150 pessoas desaparecidas. O que houve sim foram milhares de torturados. Isso foi muito bem investigado pelo Arcebispo de São Paulo, Paulo Evaristo Arns. Ele conseguiu ver arquivos e atas ainda que não estivessem abertos oficialmente.

Em segundo lugar, isso também se explica porque, no contexto do princípio desenvolvimentista, no Brasil houve um governo em sucedido. Em troca, na Argentina, foi um fracasso. A outra diferença entre os dois países radica igualmente no fato de que, enquanto o Brasil teve relações amistosas com as potências, a Argentina viveu uma guerra com a Grã-Bretanha (as Malvinas) e os Estados Unidos. Com isso, a possibilidade de que os militares brasileiros mantenham os arquivos fechados tem sido e é muito forte. Uma ditadura como a argentina que massacrou um percentual muito alto de pessoas e que, além disso, fracassou economicamente e perdeu uma guerra contra a Grã-Bretanha, não está em condições de manter segredos de Estado.

Mas não faltou vontade política por parte dos sucessivos governos, começando pelo de Lula?

O governo de Lula não teve muito entusiasmo para mexer nesse tema. Vários fatores explicam isso: a experiência pessoal sindical de Lula, que não tem muito a ver com a de Dilma. Pode ser que isso tenha influído. Mas, de modo mais geral, no Brasil não há um grande interesse por esses temas. A sociedade não se interessa muito, é um tema que não provoca entusiasmo.

Eu tenho uma experiência muito concreta. Meu livro “El Vuelo”, que traz as confissões de Adolfo Scilingo sobre como se jogavam no mar os presos na ESMA (Escola Mecânica da Armada), foi traduzido para muitos idiomas, mas a edição que menos repercussão teve foi a brasileira. O livro teve mais repercussão na Itália, na Inglaterra, na França ou nos EUA do que no Brasil.

Há, então, no Brasil, uma espécie de bloqueio político.

Sim, sim, muito claro.

A Operação Condor foi uma autêntica coordenação entre as ditaduras do Cone Sul. Seguirá sendo um fato pouco comum na história latino-americana?

Foi uma coordenação das ditaduras da Argentina, Chile, Brasil, Paraguai, Uruguai e Peru. Essas ditaduras compartilhavam informação de inteligência e também operativos de inteligência. Há argentinos detidos no Chile, no Uruguai, no Peru e no Brasil que foram entregues às forças armadas argentinas para serem assassinados. E na Argentina, também operaram forças dos outros países. Houve um campo de concentração em Buenos Aires que se chamava Automotores Orletti, onde o grosso dos detidos era de uruguaios. Os repressores de Montevidéu vinham participar dos interrogatórios junto aos argentinos. Dali eram transportados a Montevidéu e decidiam quem vivia, quem morria e quem roubava as crianças. Foi uma colaboração muito estreita entre os governos.

Tradução: Katarina Peixoto