segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Arquivologia / História Social


Gauchismo: tradição inventada
Autora:
Renata Menasche, mestre pela UFRRJ/CPDA.
Fonte: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/brasil/cpda/estudos/um/menash1.htm

I. Introdução

O tema "gauchismo" desperta hoje interesse e curiosidade por causa do reaparecimento na cena política nacional da proposta separatista do Sul do País.


"A onda separatista cresce": esta a manchete de capa da revista IstoÉ de 2 de junho de 1993. Os dados de uma pesquisa realizada nos Estados do Sul (Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo), apresentados pela revista, são surpreendentes: 43,1% dos "sulistas" (os dados incluem São Paulo) votariam pela separação de seus Estados do resto do País, sendo que nos Estados do extremo sul (Rio Grande do Sul e Santa Catarina) o separatismo já seria vitorioso agora.


Não me proponho aqui a analisar o Movimento Separatista e suas causas, mas algo que entendo como um componente ideológico em sua conformação: o "gauchismo".


Seriam várias as abordagens possíveis: poderia, dentre elas, dar peso à discussão da relação regional/nacional, ou pensar o processo de construção social da identidade "gaúcho", ou dar ênfase à história do Rio Grande do Sul, ou ainda resgatar a trajetória do Movimento Tradicionalista Gaúcho. Buscarei aqui, passando por elementos de cada uma dessas abordagens, enfatizar o que Hobsbawm e Ranger (1984) chamaram de "invenção das tradições".


II. Gauchismo


Situando a origem do culto às tradições gaúchas, Oliven (1991, p. 40) destaca o ano de 1868, quando "... um grupo de intelectuais e escritores fundou em Porto Alegre o Partenon Literário, sociedade de letrados e escritores que, através da exaltação da temática regional, tentou juntar os modelos culturais vigentes na Europa e a visão positivista da oligarquia rio-grandense", bem como a data de 1898, quando é fundado o Grêmio Gaúcho de Porto Alegre, primeira agremiação tradicionalista.


Esse autor aponta para o fato de que quando tem início esse culto às tradições gaúchas, perpassado sempre, mesmo que a partir de perspectivas diversas, por dois aspectos comuns, a "presença do campo" e a "figura do gaúcho", já "... não existia mais a figura marginal desse gaúcho do passado, gradativamente transformado em peão de estância", relacionando seu desaparecimento às modificações econômicas experimentadas pelo Rio Grande por volta de 1870 e que atingiram a região da Campanha, modernizando e simplificando sua pecuária e expulsando dos campos grande número de posteiros e agregados (Oliven, 1991, p. 40).


Ao analisar o Tradicionalismo Gaúcho, Oliven (1984, p. 57) aponta como datas-chave 1948, quando foi criado por um grupo de estudantes secundários de Porto Alegre, vindos em sua quase totalidade do interior do Estado, mais especificamente da zona da Campanha, o primeiro (depois das entidades pioneiras) Centro de Tradições Gaúchas (o 35 CTG), e 1954, ano em que os vários centros de tradições que se proliferaram a partir de 1948 se reúnem pela primeira vez num congresso, realizado em Santa Maria, para discutir o que passaria a ser a tese-matriz do Movimento Tradicionalista Gaúcho. E chama atenção para o fato do MTG ter-se originado em Porto Alegre, quando o Rio Grande do Sul "... já apresentava um considerável nível de industrialização e urbanização e num período em que vinha ocorrendo há algum tempo uma progressiva mecanização das fazendas, que, ao exigir um número cada vez menor de peões, ocasiona o êxodo rural, despovoando a campanha e criando setores marginalizados nas cidades".


Os fundadores do Movimento eram, em sua maioria, estudantes descendentes de pequenos proprietários rurais de região onde predominava o latifúndio ou de estancieiros em processo de descenso social. Assim, "embora cultuassem valores ligados ao latifúndio, não pertenciam à oligarquia rural". Eram jovens do interior em quem a cidade despertava "... a vontade de buscar no campo e no passado um refúgio seguro e claro" (Oliven, 1991, p. 43).


"Os jovens - todos homens - passaram a se reunir nas tardes de sábado num galpão improvisado, na casa do pai de um deles. Tomavam mate e imitavam os hábitos do interior, entre eles o da charla que os peões costumam manter nos galpões das estâncias." "Queriam... recriar o que imaginavam ser os costumes do campo e o ambiente das estâncias" (Oliven, 1991, p. 43-44).

Lembrando a associação entre passado e presente como uma constante em projetos modernizadores ligados à criação de estados nacionais, na Europa e nas Américas, Oliven (1991, p. 41-42) destaca como característica do processo de constituição do gauchismo "essa dialética entre velho e novo, passado e presente, tradição e modernidade..."


III. Tradição inventada


"... os membros da Sociedade comprometeram-se ... a se encontrarem ... 'vestidos com aqueles trajes tão famosos por terem sido a vestimenta de seus ancestrais... e, nas reuniões, pelo menos, falar a linguagem enfática, ouvir a deliciosa música, recitar a antiga poesia e observar os costumes específicos de sua terra'".[7]


Não é aos jovens que, em Porto Alegre, iniciaram o culto às tradições gaúchas a que se refere a citação acima, mas aos fundadores da Sociedade das Terras Altas (Highland Society), criada em 1778, em Londres, para "... incentivar as velhas virtudes das Terras Altas e preservar as antigas tradições das Terras Altas" (Trevor-Roper, 1984, p. 36).


"Tradições inventadas." Buscarei aqui resgatar alguns pontos destacados por Trevor-Hoper em "A Invenção das Tradições: a Tradição das Terras Altas (Highlands) da Escócia", por considerar sugestivos para perceber alguns aspectos da constituição do gauchismo, tomando por referência a forma como Hobsbawm (1984a, p. 10) entende a "invenção das tradições": "... na medida em que há referência a um passado histórico, as tradições 'inventadas' caracterizam-se por estabelecer com ele uma continuidade bastante artificial... elas são reações a situações novas que ou assumem a forma de referência a situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quase que obrigatória" (Hobsbawm, 1984, p. 10).


*

Trevor-Roper (1984) mostra que a reputada como antiga "parafernália nacionalista", através da qual os escoceses celebram sua identidade nacional, é, na verdade, bastante moderna, destacando que mesmo a idéia de que existe uma cultura e uma tradição específicas das Terras Altas não passa de uma invenção retrospectiva (p. 25).


Esse autor aponta que "a criação de uma tradição das Terras Altas independente e a imposição da nova tradição e de seus símbolos externos em toda a nação escocesa foi obra de fins do século XVIII e início do século XIX", identificando três etapas nesse processo: a) rebelião cultural contra a Irlanda; b) elaboração artificial de novas tradições das Terras Altas; c) adoção dessas tradições pelas demais regiões da Escócia (p. 26-27).


Analisando, por exemplo, a origem e difusão do traje característico escocês, Trevor-Roper mostra que "... o kilt é uma vestimenta absolutamente moderna, idealizada e vestida pela primeira vez por um industrial quaker inglês, que não o impôs aos montanheses para preservar o modo de vida tradicional deles, mas para facilitar a transformação deste mesmo modo de vida: para trazê-los das urzes para a fábrica" (p. 33). O kilt foi uma adaptação dos antigos mantos e roupas axadrezadas utilizados pelos camponeses montanheses pobres, cortados de modo a conferir maior mobilidade aos trabalhadores fabris. Mas, aponta o autor, o traje não se teria generalizado não fossem os acontecimentos pós-1745, quando a grande rebelião é sufocada pelo governo britânico, que passa a proibir a utilização dos trajes montanheses que, após 35 anos, pareciam ter-se extinguido por completo (p. 34).


Neste período, então, os camponeses aderiram às calças inglesas, mas "... as classes médias e altas, que antes faziam pouco daqueles trajes 'servis', adotaram com entusiasmo as vestes que os usuários tradicionais haviam rejeitado" (p. 34-35). Trevor-Roper aponta que são duas as causas dessa mudança notável: a) o movimento romântico... "antes de 1745, os habitantes das Terras Altas tinham sido desprezados, por serem considerados bárbaros indolentes e rapaces. Em 1745, tinham sido temidos por serem considerados rebeldes perigosos. Mas após 1746, tendo-se esfacelado sua sociedade com tanta facilidade, eles apresentavam o romantismo de um povo primitivo combinado ao fascínio das espécies em perigo de extinção"; b) a formação dos regimentos das Terras Altas pelo governo britânico, pois "... durante os trinta e cinco anos em que o campesinato céltico adotou em definitivo as calças saxônicas... foram apenas os regimentos montanheses que mantiveram a indústria do tartan em funcionamento e estabeleceram a novidade mais recente de todas, o kilt de Lancashire" (p. 35-36).


O autor afirma que a generalização do kilt está relacionada à associação criada entre os diferentes padrões de tartan e os diferentes clãs (o princípio diferenciador dos regimentos fora transferido aos clãs), destacando o ano de 1822, quando, por ocasião da visita do Rei Jorge IV a Edimburgo, foi produzida uma verdadeira pantomima em torno das pretensas antigas tradições. Trevor-Hoper conclui afirmando a "... força de uma 'alucinação' apoiada por um interesse econômico", apontando que "... a farsa de 1822 havia dado novo impulso à indústria do tartan, e inspirado uma nova fantasia a ser aproveitada por essa indústria..." (p. 42).


*

Love (1975, p. 4) chama atenção para "... o fato de que o debate a respeito do caráter gaúcho tem focalizado exclusivamente uma das subculturas do Rio Grande, o complexo pastoril, um modo de vida ao qual somente uma minoria de rio-grandenses..." estaria ligada.

J. G. Lockart, um observador decepcionado com a pantomima criada para recepcionar o Rei em 1822, denuncia que "as notáveis e surpresas glórias" da Escócia foram atribuídas às tribos célticas que "sempre constituíram uma parte pequena e quase sempre sem importância da população escocesa".


*

Conta-se que a introdução das bombachas no Rio Grande do Sul teria ocorrido durante a Guerra do Paraguai, quando a Inglaterra, que fornecia essas calças largas, apropriadas aos desertos, aos exércitos em combate pelas possessões inglesas na Turquia, viu-se com um grande excedente de peças produzidas, necessitando criar novo mercado para absorvê-las.

Highlands escocesas. Campanha gaúcha. Londres e Porto Alegre: origem urbana. O camponês céltico e o gaúcho: imagens cristalizadas no tempo. O kilt e as bombachas: mercado simbólico. Recriação de um passado idealizado. "Tradições inventadas."


Bibliografia

Ferraz, Silvio (1993). "Secessão Rima com Inflação." IstoÉ, nº 1.235, 2 de junho.

Fry, Peter (1982). "Feijoada e 'Soul Food': Notas sobre a manipulação de símbolos étnicos e nacionais", in: Para Inglês Ver: identidade e política na cultura brasileira, Rio de Janeiro, Zahar.

Hobsbawm, Eric (1984a). "Introdução: A Invenção das Tradições", in: E. Hobsbawm & T. Ranger (orgs.). A invenção das tradições, Rio de Janeiro, Paz e Terra.

__________. (1984b). "A Produção em Massa de Tradições: Europa, 1879 a 1914", in: E. Hobsbawm & T. Ranger (orgs.). A invenção das tradições, Rio de Janeiro, Paz e Terra.

Love, Joseph (1975). O regionalismo gaúcho e as origens da Revolução de 1930. São Paulo, Perspectiva.

Oliven, Ruben George (1984). "A Fabricação do Gaúcho." Ciências Sociais Hoje, p. 57-68.

__________. (1986). "O Nacional e o Regional na Construção da Identidade Brasileira." Revista Brasileira de Ciências Sociais, 1(2), p. 68-74.

__________. (1988). "A Atualidade da Questão Regional." Revista de Ciências Sociais, 2(1), p. 85-92.

__________. (1989). "O Rio Grande do Sul e o Brasil: uma relação controvertida." Revista Brasileira de Ciências Sociais, 3(9), p. 5-14.

__________. (1991). "Em Busca do Tempo Perdido: o movimento tradicionalista gaúcho." Revista Brasileira de Ciências Sociais, 6(15), p. 40-52.

Pesavento, Sandra Jatahy (1980). História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Mercado Aberto.

Thomas, Keith (1988). O homem e o mundo natural. São Paulo, Companhia das Letras.

Trevor-Roper, Hugh (1984). "A Invenção das Tradições: a Tradição das Terras Altas (Highlands) da Escócia", in: E. Hobsbawm & T. Ranger (orgs.). A invenção das tradições, Rio de Janeiro, Paz e Terra.

Notas

[1] As causas apontadas para a "onda separatista" são várias, destacando-se a evasão de recursos do Sul para o Nordeste e a alegada marginalização dos sulistas da vida política nacional.

[2] Evaristo de Moraes Filho, no Dicionário de Ciências Sociais (1987), Rio de Janeiro, FGV/MEC, p. 944, mostrando a importância do positivismo no Estado, afirma que "o Rio Grande do Sul transformou-se no reduto mais radical e extremado do positivismo social e político no Brasil, com Constituição estadual (1891) bem próxima de seus princípios doutrinários e que em muitos pontos se chocava com a federal".

[3] "A fundação do Grêmio Gaúcho foi seguida pela criação de mais cinco entidades, consideradas pioneiras pelos tradicionalistas..." (Oliven, 1991, p. 42).

[4] Oliven (1991, p. 40), citando um trabalho seu de 1988, "A cidade como categoria sociológica", in: Urbanização e Mudança Social no Brasil, Petrópolis, Vozes, especifica esse "campo" como sendo o "... da região da Campanha, localizada no sudoeste do Rio Grande do Sul, na fronteira com Argentina e Uruguai...", e descreve a "figura do gaúcho" a que se refere: "... homem livre e errante, que vagueia soberano em seu cavalo, tendo como interlocutor privilegiado a natureza das vastas planícies dessa área pastoril".

[5] Posteiro é o vigia do gado (Novo Dicionário Aurélio).

[6] "... cujo nome evoca a Revolução Farroupilha de 1835, em que o Rio Grande do Sul, sob a liderança do estancieiro Bento Gonçalves, procura se separar do Brasil ao proclamar a República de Piratini" (Oliven, 1984, p. 57).

[7]

[8] O autor define "tradição inventada" como "... um conjunto de práticas reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado..." (p. 9).

[9] O autor está se referindo ao uso do "...saiote (kilt), feito de um tecido de lã axadrezado (tartan) cuja cor e padrão indicam o 'clã' a que pertencem ...", bem como à música da gaita de foles.

[10] "Antes da União

[11] Sobre a visão idealizada do campo neste período, ver K. Thomas (1988).

[12] Esse autor identifica três subculturas básicas no Rio Grande do Sul, associando-as às formas de ocupação das diferentes regiões: Litoral, Campanha e Cima da Serra (esta tendo como uma das subdivisões a Zona Colonial, povoada por colonos alemães e italianos).

[13] Citado por Trevor-Roper (1984, p. 41).

[14] A partir de então os gaúchos teriam substituído o antigo xiripá pelas bombachas. Não tive acesso à bibliografia necessária para checar essa versão, que apresento, então, como eu própria a conheço: na forma do "ouvir falar".

Arquivologia / História Social



A bem-sucedida invenção do gaúcho

Gaúchos estão espalhados por todo o país, dos ministérios palaciais às fazendas matogrossenses, dos gramados futebolísticos às redações de jornais. Espalhados não, espraiados. E se perguntarmos a você o que é ser gaúcho, provavelmente você responderá sem dificuldades que é andar a cavalo pelos pampas verdejantes, comer churrasco com a família, tomar chimarrão numa roda de amigos, dançar ao som da gaita e do violão com bota e bombacha, ainda que sete entre dez gaúchos não conheçam o pampa senão de carro, nunca tenham galopado, não dancem senão de tênis e jeans, além daqueles tantos que não gostam de chimarrão e os outros não tantos vegetarianos.


Não, não se trata de um estereótipo, mas de uma imagem de gaúcho construída ao longo dos anos e consolidada no imaginário brasileiro (incluindo o gaúcho). Alguns dirão que tal imagem vem desde os anos heróicos da Revolução Farroupilha ou, mais remota ainda, da Guerra Guaranítica. Mas não: é uma imagem que solidificou-se e espalhou-se sobremaneira só a partir de 1948 (pouco mais de cinqüenta anos atrás!), ano em que Barbosa Lessa e outros jovens fundaram o Centro de Tradições Gaúchas “35 CTG”.


Com o objetivo de fortalecer a cultura gaúcha sem preocupar-se com a história verdadeira, mas a fim de projetar um futuro melhor ao povo, um futuro mais “estável”, calcado nas “tradições” da terra, este grupo idealizou o tradicionalismo e fundou locais específicos de encontro, com regras de dar inveja a qualquer manual de etiqueta. Estes Centros se espalharam, começaram a promover festivais, concursos, tornarem-se fortes especialmente no interior, chegaram a outros estados e países. Hoje, disseminado, convive com a indústria cultural, tornou a churrascaria um negócio lucrativo no mundo todo e atrai de executivos engravatados a operários da construção civil. Ficou de tal forma embrenhado na cultura que na geração atual poucos sabem que a “prenda” não usava aquele vestido armado, que o termo “gaúcho” era considerado pejorativo, que algumas regiões desenvolveram-se à mercê do cavalo e que nossos heróis farroupilhas não usavam botas de couro como as hoje apregoadas. Não sabem porque de tal forma esse imaginário ficou consolidado que tomamos por verdade uma tradição e um passado elaborados há pouco mais de cinqüenta anos. Não sabem por que a invenção criou o invento, e hoje de fato ser gaúcho é tomar chimarrão e comer churrasco vestindo bota e bombacha, ainda que nos finais de semana ou na Semana Farroupilha.


Uma boa oportunidade para se conhecer um pouco melhor essa invenção cultural tão bem sucedida é o livro Gaúcho, o campeiro do Brasil (Letras Brasileiras, 2006, 84 págs.). Na obra, um texto inédito de Barbosa Lessa (o já referido fundador do “35 CTG”) é ilustrado por fotografias belíssimas de Leonid Streliaev numa edição bilíngüe impecável, colorida, diagramada com cuidado e impressa em folha especial. Além disso, o editor e apresentador Jakzam KaiserO sentido e o valor do tradicionalismo”, um texto importantíssimo que não era publicado desde 1979.


Se o texto inédito de Lessa é uma repetição ufanista das características do gaúcho, apresentadas em verbetes como “A fauna”, “A flora”, “O pampa”, “O churrasco”, “A estância”, o documento de 54 é uma síntese esclarecedora do pensamento daqueles que fundaram – ou inventaram – o tradicionalismo, a tradição, o gaúcho:


“Quando a cultura de determinado povo é invadida por novos hábitos e novas idéias, duas coisas podem ocorrer. Se o patrimônio tradicional dessa cultura é coerente e forte, a sociedade somente tem a lucrar com o referido contato. Se, porém, a cultura invadida não é predominante e forte, a confusão social é inevitável. (...) O movimento tradicionalista rio-grandense visa precisamente a combater os reconhecidos fatores de desintegração social. (...) E ao dizermos isso, estamos acentuando o erro daqueles que acreditam ser o Tradicionalismo uma tentativa estéril de 'retorno ao passado'. A realidade é justamente o oposto: o Tradicionalismo constrói para o futuro.” (Grifo meu.)


Vale fazer uma breve contextualização histórica da criação do movimento, iniciado com força em 1947. O Brasil como um todo modernizava-se sobremaneira a partir do segundo quartel do século, especialmente depois do ciclo do café. Em 1930, uma revolução liderada pelo gaúcho Getúlio Vargas assume o poder nacional e este gaúcho – um gaúcho pampiano, estancieiro, o protótipo do gaúcho decantado pelo tradicionalismo – se mantém por quinze anos no poder, até 1945. Quando deixa a presidência, após o fim da II Guerra, o mercado brasileiro está muito mais aberto, as influências culturais são diversas a partir do desenvolvimento das comunicações e os rio-grandenses perdem espaço na disputa pelo poder nacional. Não por acaso dois anos depois funda-se o primeiro CTG, e apenas dois anos mais tarde Erico Veríssimo lança O Continente, abrindo caminho para uma vasta tradição gaúcha de romances históricos.


Não que construir uma tradição, como o próprio Barbosa Lessa afirma ser o objetivo do tradicionalismo, seja novidade. Estudiosos como Homi Bhabha, Edward Said e Stuart Hall falam na nação como uma narração e nas comunidades nacionais como comunidades imaginadas. Hall sintetiza este esforço de uma forma interessante: “não importa quão diferentes seus membros possam ser em termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional busca unificá-los numa identidade cultural para representá-los como pertencendo à mesma e grande família nacional”. Dessa forma, os esforços tradicionalistas à Lessa para blindarem o Rio Grande do Sul contra a invasão cultural estrangeira não leva em consideração as culturas alemã, italiana, portuguesa, indígena, negra e metropolitana (Porto Alegre, Rio Grande), também fortes no Estado.


Um exemplo claro do tipo de contradição e, por que não falar, de violência cultural que esta visão unificadora de uma sociedade pode causar está simbolizado no capítulo “Crença” do livro de Barbosa Lessa. O texto fala da mais conhecida lenda gaúcha, a do Negrinho do Pastoreio, a legenda da foto fala de “religiosidade sincrética”, e a fotografia colorida de quase página inteira mostra uma criança pequena, negra, vestida como um jesuíta e segurando um terço católico. Ou seja, será que unificar significa mesmo mesclar, será que se consegue ser sincrético ou no final das contas ideologias dominantes – a do estancieiro, a do cristianismo – preponderam e subordinam as demais?


Questão que extrapola o debate sobre o gaúcho e não invalida os esforços ainda hoje empregados para que a chama tradicionalista se mantenha forte (esforços inclusive dos governos: a Lei da Semana Farroupilha é de 1964; a da Pilcha Gaúcha, de 1989; a do Dia do Gaúcho, de 1991; a do Cavalo Crioulo, de 2002; a do Churrasco e Chimarrão, de 2003). Mas parece importante não perdermos de vista esta construção política de uma cultura para não encobrir divergências históricas ou impedir que surjam no seio da sociedade gaúcha novas e modernas tendências culturais, tendências estas não mais nem menos legítimas, não mais nem menos puras.

(diga-se de passagem, um também entusiasta do tradicionalismo) teve o cuidado de publicar no final um texto escrito por Barbosa Lessa e aprovado em 1954 como documento matriz do Movimento Tradicionalista Gaúcho, “

Nota do Editor
Leia também "Breve reflexão cultural sobre gaúchos e lagostas".


FONTE: http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=2080&titulo=A_bem-sucedida_invencao_do_gaucho


Arquivologia / História Social


Documento revela manual de "contra-espionagem" militar

Professores e políticos criticam suposta bisbilhotagem


A divulgação na semana que passou pela revista Carta Capital (edição de 19.10.2011) de uma matéria jornalística cuja manchete é “Paranoia verde-oliva” causou repercussões. A reportagem se refere a um documento, até então sigiloso, produzido pelo Estado Maior do Exército. Nesse documento, chamado de “Manual de Contra-inteligência”, são descritos como “elementos adversos” às forças armadas e, por isso, supostamente deveriam ser investigados, grupos, movimentos sociais, entidades e até ONGs que, atuando no país ou no exterior, defendam “mudanças radicais e revolucionárias”, e, ultrapassando em seus programas e bases “os limites da legalidade institucional do estado democrático de direito”.

O documento, datado de 2009, teve repercussão dentro do governo federal: o ministro da Defesa, Celso Amorim, solicitou explicações ao comandante do Exército, general Enzo Peri e ainda pediu que os comandos da Marinha e da Aeronáutica informem se há algum documento similar circulando nessas forças militares. Em resposta a um questionamento da revista Carta Capital, pedindo informações sobre o objetivo do documento, o setor de Comunicação Social do Exército se negou a entrar em detalhes e ainda alertou que era crime divulgar documentos sigilosos.

Na avaliação do professor de História da UFSM, Diorge Konrad, o teor do que foi revelado pela publicação nada tem a ver com paranoia. Segundo ele, “o problema está na continuidade da formação de militares dentro da Doutrina de Segurança Nacional”. Essa doutrina, explica o professor, historicamente “defende as classes dominantes a partir da lógica de que o principal inimigo é o inimigo interno, que necessita ser combatido”. Konrad acrescenta ainda que esse tipo de visão nada tem a ver com postura nacionalista. “O que eles propõem é uma contraposição àqueles que são contra o imperialismo e que defendem a democratização da sociedade brasileira”.

José Luiz de Moura Filho, professor de Direito da UFSM, vai além. Para ele, o Brasil precisa “construir uma política de segurança que fuja da velha doutrina de segurança nacional, que se baseie na visão de qualificar alguns grupos como inimigos internos”. Moura ressalta também que é inevitável que haja, por exemplo, um serviço de inteligência que sirva ao governo, mas que esse tipo de atividade deva estar embasada numa doutrina de Direitos Humanos, cuja função seja de resguardar os interesses do país, na defesa das riquezas da floresta amazônica, do pré-sal, etc.

DEPUTADOS

A repercussão política, por enquanto, ficou por conta de dois deputados do Partido Socialismo e Liberdade (PSol). Na última quinta, Ivan Valente e Chico Alencar apresentaram requerimento nas comissões de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) e na de Defesa Nacional para que sejam cobradas explicações sobre a existência do referido Manual. Na análise dos parlamentares, o que está descrito e prescrito no documento fere o “Estado democrático de direito”.

Texto: Fritz R. Nunes com informações de Carta Capital e site do PSol
Foto:Site do Psol
Assessoria de Impr. da SEDUFSM